"Quando
brinco com minha gata, quem sabe se ela não está se divertindo mais
comigo do que eu com ela?" (Montaigne, 2002, p. 3). Este é o espírito do
ensaio-teórico(1),
a relação permanente entre o sujeito e objeto, um vir-a-ser constituído
pela interação da subjetividade com a objetividade dos envolvidos.
Neste contexto, o ensaio, desde a época de Montaigne, "se tornou uma
forma respeitável; sua novidade estava na louvação do eu. Sua razão de
ser era a noção de que os pensamentos, sentimentos, incertezas, certezas
e contradições de uma pessoa merecem divulgação e em seguida atenção de
outras" (Boorstin, 1995, p. 697). Da época de Montaigne até a
atualidade, os ensaios adquiriram diversas formas e formatos, assim como
são utilizados para diversos fins: literários, filosóficos, científicos
etc. Essas variações nas formas e formatos, assim como a multiplicidade
nas suas utilizações, levam a concepções e usos equivocados desse
estilo e forma de refletir a realidade. Diferente do método tradicional
da ciência, em que a forma é considerada mais importante que o conteúdo,
o ensaio requer sujeitos, ensaísta e leitor, capazes de avaliarem que a
compreensão da realidade também ocorre de outras formas.
Este
ensaio deve ser lido por sujeitos com espíritos livres de preconceitos,
sem estarem dominados pelo formalismo da ciência. Aqui o leitor não
encontrará a disposição formal de um estudo que segue a divisão e a
lógica estabelecida pelas metodologias científicas tradicionais. No
lugar do objetivo geral, dos objetivos específicos, da justificativa, da
fundamentação teórica, da metodologia que define os critérios de coleta
e análise de dados e da conclusão, no ensaio a orientação é dada não
pela busca das respostas e afirmações verdadeiras, mas pelas perguntas
que orientam os sujeitos para as reflexões mais profundas. Assim,
respeitando a concepção original do que é ensaio, este necessita de
leitores preparados para compreender a sua importância para a formação
do conhecimento na atualidade. Basta lembrar que o empirismo, o
racionalismo, o positivismo e tantos outros conhecimentos que sustentam a
base da ciência tradicional de hoje surgiram por meio de vários ensaios
de pensadores e intelectuais. Logo, as perguntas fundamentais que
orientam este ensaio são: que é e quais as características, como se dá a
construção, quais os elementos presentes no movimento de construção,
quais as relações entre o ensaio e a administração de um ensaio?
Para
os leitores mais tradicionais, que esperam conclusões por meio de
afirmações definitivas, a orientação é que cessem a leitura neste
momento. As reflexões no decorrer do ensaio instigam os leitores a tirar
suas próprias conclusões. Para aqueles que gostam de desafios e
provocações que levam a livres reflexões e conclusões, a aventura começa
agora. Da época de Montaigne até a atualidade, os ensaios tornaram-se
importantes formas de geração de conhecimento. Várias são as áreas que
os utilizam como forma: da ciência física à literatura, passando pela
filosofia, pelas ciências sociais, pela química e pela biologia; o
ensaio é forma que quebra a lógica esquemática e sistemática da ciência
tradicional, sobretudo de natureza positivista. Os ensaios são muito
utilizados na área das ciências sociais. Grande parte dos cientistas
sociais, políticos e sociólogos utilizam-se da forma ensaística para
produzir reflexões sobre os acontecimentos mais relevantes da sua época.
A forma ensaística consolidou vários autores conhecidos como Marx,
Weber, Norbert Elias, etc. No Brasil, Raimundo Faoro, Darcy Ribeiro,
Antonio Candido, são nomes importantes que se utilizaram do ensaio para
refletir sobre a formação social no Brasil. Apesar das contribuições
expressivas nas áreas econômicas, ciências sociais, economia etc.
nenhuma área do conhecimento utilizou tanto o ensaio como a Filosofia,
sobretudo os filósofos iluministas. Alguns exemplos são referências;
entre eles destacam-se: Rousseau (1973) com o Ensaio sobre a origem das
línguas; Locke (1997) com o Ensaio acerca do entendimento humano; Hume
(1996) com sua Investigação acerca do entendimento humano.
Posteriormente, outros filósofos utilizaram o recurso do ensaio para
pensar e experimentar a realidade, como Bachelard (1998) e Habermas
(2001), por exemplo.
Ante
tantos ensaios, é possível definir o que é ensaio? Que há de comum nos
ensaios das diversas áreas de conhecimento, se realmente existe alguma
coisa em comum entre eles, que possa definir o que seja a essência do
ensaio?
O
fato é que "os maus ensaios não são menos conformistas do que as más
dissertações" (Adorno, 1986, p. 170). Sua força, apesar de não estar
atrelada ao rigor metodológico, como acontece na produção científica,
está na capacidade reflexiva para compreender a realidade. Em tempos de
especialização crescente do conhecimento, da velocidade, como novas
técnicas são criadas, novas estruturas racionais são apresentadas e uma
indústria cultural e intelectual faz com que a atualidade do ensaio seja
anacrônica. Há associação indevida do ensaio como produtor de
conhecimento estruturado, devido à expansão da produção de informações e
pseudoconhecimentos, incentivados pela indústria cultural e
intelectual. Assim,
a
forma do ensaio até hoje ainda não percorreu o caminho da autonomização
que a sua irmã, a poesia, há muito já deixou para trás: desenvolver-se a
partir de uma primitiva unidade com a ciência, a moral e a arte
(Lukács, 1911, p. 29).
Muitos
ensaios, na atualidade, tornaram-se uma embalagem que privilegia a
forma, que atende ao produto que se almeja entregar. Como embalagem que
envolve um produto, seja na forma de presente ou de mercadoria para
consumo cotidiano, sua qualidade pode ser manipulada por quem vende,
quem ganha ou compra o produto. É possível dar um presente (de conteúdo)
ruim, duvidoso na qualidade, questionável em relação à originalidade,
mas que pode ser valorizado pela embalagem: forma da escrita,
ortografia, frases de efeito etc. Muitos indivíduos apelam para o
ensaio, porque neste parece caber tudo. Todo conhecimento é possível, a
falta de rigor nas argumentações são mascaradas com a ideologia da
liberdade total. Muitos ensaístas criticam a forma como a ciência gera
novos conhecimentos, não pela crítica em relação ao processo científico,
pela metodologia utilizada ou pelo formalismo da ciência, mas porque se
agarram no ensaio como forma, por considerarem mais fácil e prático
fazê-lo.
O
ensaio precisa ser utilizado como opção consciente e intencional, ou
seja, como a forma mais adequada no entendimento de algo. O que se
verifica, na atualidade, é que o ensaio vem atender a um apelo da
sociedade do consumo cultural e midiática: Vale tudo para se expressar. A
utilização do ensaio como forma não significa a total rendição ao fim
dos limites formais ou a crítica irracional que se possa fazer em
relação à ciência, mas uma forma específica de compreensão da realidade,
por meios diferentes daqueles utilizados pela ciência, na sua forma
tradicional de produzir conhecimento.
Assim,o
ensaio caracteriza-se pela sua natureza reflexiva e interpretativa,
diferente da forma classificatória da ciência. No centro do ensaio está a
relação quantitativa versus qualitativa. Enquanto a ciência
adquire maior autonomia, valorizando aspectos quantitativos para
promover generalizações que façam com que um número cada vez maior de
pessoas passe a compreender o mundo a partir da instituição de uma
racionalidade baseada na calculabilidade, o ensaio valoriza aspectos
relacionados às mudanças qualitativas que ocorrem nos objetos ou
fenômenos analisados pelos ensaístas. Na essência dessa relação, "o
ensaio é a forma da categoria crítica de nosso espírito, pois quem
critica precisa necessariamente experimentar, precisa criar condições
sob as quais um objeto se torne visível de novo e diversamente do que
num autor" (Bense, 1947, p. 420). A forma como o ensaísta experimenta,
especula e vivencia o objeto só se torna possível na compreensão
qualitativa dele. Abre-se mão das simples classificações e
quantificações que possam criar categorias generalizáveis para o
entendimento humano compartilhado. Nos ensaios, "o álacre e o lúdico
são-lhe essenciais" (Adorno, 1986, p. 168). Sua lógica foge à
racionalidade instrumental ou à calculabilidade do mundo moderno. A
separação entre ensaio e ciência, na atualidade, ocorre por motivos
diferentes da época do Iluminismo ou do início do Século XX. Enquanto a
ciência caminha para a objetividade cada vez maior, o ensaio, nas mãos
dos falsos ensaístas, cai muitas vezes em processo de subjetivação. Na
atualidade da indústria cultural, a ciência e a forma ensaística se
confundem, quando ambas se tornam meios e não fins em si mesmos, ou
seja, quando são utilizadas como instrumentos de dominação e de
reprodução da lógica econômica ou das racionalidades dominantes. Adorno,
qualificando o ensaio como forma de arte, percebe que a "separação
entre ciência e arte já é irreversível. Só a ingenuidade do fabricante
de literatura, que, no mínimo, se considera um gênio da organização e
converte boas obras de arte em má sucata, não toma conhecimento disto"
(Adorno, 1986, p. 170). A ciência e a arte e, consequentemente, o
ensaio separam-se com o progressivo processo de objetivação do mundo. O
ensaio como forma atende aos interesses do mercado, não restritos apenas
às relações econômicas, mas também à simples utilização dos ensaios
como recursos ou meios para obtenções de vantagens ou ganhos
individuais. Na área acadêmica, os ensaios tornaram-se formas
facilitadas de produção considerada científica, sobretudo nas áreas das
humanidades ou das ciências sociais aplicadas, incluindo administração,
teoria das organizações etc.
A
suposta facilidade de apenas sentar e escrever, ante a necessidade de
tempo, empenho, trabalho extra além da escrita ou realizar entrevistas,
aplicar questionários, tabular e outros, muito comuns nas produções de
caráter científico, faz com que muitos pesquisadores se aventurem nos
ensaios. Grande parte desse movimento ocorre devido ao produtivismo
crescente. A exigência cada vez maior de pontuar, dentro da lógica das
agências reguladoras da área científica, faz com que os pesquisadores
procurem meios para serem cada vez mais produtivos. Neste contexto, o
ensaio parece ser o meio mais fácil. Todavia, existem contradições nesse
processo: primeiro porque, conforme a ideia de Adorno já apresentada,
os maus ensaios são tão ou mais danosos do que as más dissertações, ou
outras formas de produção do conhecimento. Segundo, um ensaio teórico
exige maturidade do ensaísta como atender a quesitos específicos que o
qualificam. Muitas dessas características exigem empenho e compromisso
por parte dele, o que não é diferente da situação em que se está
produzindo dentro dos critérios científicos. Terceiro, os bons ensaios
são reflexões profundas e minuciosas. Para tanto é exigido envolvimento,
reflexão e capacidade analítica e crítica no pensar e repensar em
relação ao ensaio proposto. Diferentemente dessas condições, "em relação
ao procedimento científico e à sua fundamentação filosófica como
método, o ensaio, de acordo com sua própria ideia, tira todas as
consequências da crítica ao sistema" (Adorno, 1986, p. 173). Conforme o
parecer de Adorno (1986, p. 173), "mesmo sem dizer isso expressamente, o
ensaio se conscientiza quanto a não-identidade; radical no
não-radicalismo, na abstenção diante de qualquer redução a um princípio,
no gesto de acentuar o parcial diante do total, no caráter
fragmentário".
O
ensaio é um meio de análise e elucubrações em relação ao objeto,
independentemente de sua natureza ou característica. A forma ensaística é
a forma como são incubados novos conhecimentos, até mesmo científicos
ou pré-científicos. Não é instrumento da identidade entre sujeito e
objeto, mas é meio para apreender a realidade, por renúncia ao princípio
da identidade. Assim, surge como tentativa permanente de resolver a
questão central da filosofia moderna: a separação e tensão permanente
entre sujeito e objeto na compreensão da realidade. Sua radicalidade
está no seu não-radicalismo dogmático. A radicalidade estabelece-se na
forma como o ensaísta vai à raiz do objeto analisado. Assim, a
radicalidade é ir à raiz sem dogmatizar em métodos ou sistemas fechados
na compreensão dos objetos. Desta maneira, o ensaio não segue a mesma
lógica da ciência tradicional ou das teorias sistematizadas. Conforme
afirmação de Spinoza e lembrado por Adorno, "a ordem das coisas seria a
mesma que a das ideias. Já que ordem sem lacunas dos conceitos não se
identifica com o ente, o ensaio não almeja uma construção fechada,
dedutiva ou indutiva" (Adorno, 1986, p. 174). O ensaio não requer um
sistema ou modelo específico, pois seu princípio está nas reflexões em
relação aos próprios sistemas ou modelos. Permite a busca por novos
enfoques e interação permanente com os próprios princípios da forma. No
ensaio, busca-se a construção da forma adequada, mesmo que esta não
exista a princípio. Nele, o objeto exerce primazia, mas a subjetividade
do ensaísta está permanentemente em interação com ele. A subjetividade é
dos elementos permanente e importante na forma como o ensaio avança
como processo de conhecimento. A verdade não se concretiza pela
afirmação dogmática resultante da simples utilização de modelos ou
sistemas. A verdade é reduzida a meio, não confundindo verdade com
princípio da identidade. Desta forma,
se
a verdade do ensaio se move através da sua inverdade, então ela não
deve ser buscada na mera antítese de seu componente insincero e
proscrito, mas nele mesmo, em sua mobilidade, em sua falta de solidez,
cuja exigência a ciência transferiu das relações de propriedade para o
espírito (Adorno, 1986, p. 184).
A
verdade não se torna propriedade da consciência e não é apropriada como
resultado de procedimentos estabelecidos. Ela se orienta pelo processo
permanente de fragmentação dos seus próprios pressupostos. A
característica mais elementar do ensaio é a originalidade. O entendimento deste está relacionado à concepção de novidade. O ensaio
precisa ter algum elemento de originalidade, associado ao ineditismo.
Assim, precisa ter algo incomum, nunca visto, publicado ou impresso. A
originalidade pode estar na argumentação, na escolha do objeto de
análise, no recorte dado à análise, na abordagem epistemológica, na
subversão da racionalidade dominante, relacionada ao tema. Em muitas
situações, o ensaio está relacionado ao novo, ao ecletismo ou ao fora de
padrão. Assim, este é mais do que a concepção atribuída por Lukács
(1911, p. 23), para quem
o
ensaio sempre fala de algo já formado ou, na melhor das hipóteses, de
algo que já tenha uma vez estado aí; pertence, pois, à sua essência que
ele não destaque coisas novas a partir de um vazio nada, mas se limite a
ordenar, de um modo novo, coisas que em algum momento já foram vivas.
Este entendimento limita-se aos ensaios literários, área de Lukács.
Em
relação à originalidade na argumentação, o ensaio tem como atributo
sair da razão e da argumentação padronizada. A linha de raciocínio
argumentativa não deve render-se ao mero formalismo da lógica
tradicional. A compreensão dos argumentos precisa estar embasada em
pressupostos válidos, verificáveis ou não, pois se somente os
pressupostos verificáveis tivessem validade, o ensaio se reduziria à
comprovação mecanicista da realidade. O ato argumentativo precisa ser
construído ao longo do processo de envolvimento com o objeto. Os
argumentos são resultados da interação de sujeito e objeto, em que a
lógica e as verdades são meios e não fins em si mesmos. A argumentação
não deve caracterizar-se como busca desmedida da verdade. A verdade,
como fim em si mesma, é responsável por retirar a originalidade da
argumentação exigida no ensaio. Isto ocorre porque, se a verdade
existisse em si mesma, o componente essencial da originalidade não
poderia existir, já que toda a originalidade pressupõe surpresa em
relação à compreensão tradicional de algo. A argumentação é a rendição
do princípio afirmativo de algo, e a permanente renúncia às respostas
prontas, previamente apresentadas como forma de solucionar os
questionamentos. Esta é a razão em movimento, em que a verdade é apenas o
momento em que algo parece ser resultado de uma certeza ou da
existência de um elemento definitivo. A originalidade da argumentação
consiste em consolidar o movimento da dialética, em que o ato racional
da argumentação é o motor do movimento que transforma a compreensão da
realidade. A originalidade da argumentação consiste em achar elementos
novos e diferentes dos tradicionalmente apresentados, ou seja, é nova
razão, prova, demonstração ou indício que modificam a compreensão
qualitativa do objeto, contudo sem fazer do próprio argumento uma
verdade em si mesma. São Tomás de Aquino afirma que o argumento é o que
convence a mente a assentir em alguma coisa. Entretanto, a coisa
(objeto) está em movimento, assim como a mente do ensaísta, o que leva à
necessidade de revisar permanentemente os elementos de convencimentos
que levaram ao assentimento. O argumento não deve ser ato de fé, de
renúncia da razão questionadora. Tampouco deve ser o que Locke (1997),
no livro Ensaios, entende como sendo um argumento: a forma de fazer com
as provas sejam capazes de fazer com que uma proposição passe a ser
verdadeira. A originalidade da argumentação não pode render-se a essa
concepção, porque, se assim fosse, a argumentação seria reduzida a uma
utilidade antecipadamente estabelecida ou a uma vontade previamente
definida antes mesmo do desenvolvimento do argumento. O argumento, por
si só, é um ato, em que as razões são transformadas pelo processo
permanente de revisitar a própria razão e em que verdades são colocadas à
prova. Outra característica relevante no ensaio está associada à
escolha do objeto de análise. Este é a coisa que se manifesta na forma
de fenômeno a ser compreendido. O objeto pode ser material ou imaterial,
concreto ou abstrato, mas sempre é real, pois existe enquanto algo que
aparece, possui essência e é cognoscível na totalidade. De um objeto
podem derivar outros, porque, como fenômeno, pode manifestar-se de
diversas formas. No ensaio é possível experimentar os objetos no intuito
de compreender os fenômenos que os acompanham. O ensaio permite a
tentativa de compreender o fenômeno para conhecer o objeto, assim como
permite analisar o próprio fenômeno para modificar a compreensão do
objeto. As escolhas dos objetos não estão associadas às escolhas
deliberadas da razão, baseadas na identificação das coisas previamente
previstas. Os objetos podem ser identificados no próprio desenvolvimento
do ensaio, ou seja, é possível que um ensaio comece com um objeto
definido ou mesmo sem um e chegue ao fim com o mesmo objeto, com outro,
ou ainda com nenhum objeto analisado. O fato é que as escolhas destes
podem, ou não, ser intencionais, antecipadamente previstas ou não; mas é
fato, que mesmo a total ausência de um objeto já caracteriza a
existência de um objeto, o nada.
O
mais comum, no entanto, é atribuir um objeto de análise já no início do
ensaio. Ocorre que o processo de análise só é possível na manifestação
do objeto como fenômeno. O ponto central está na compreensão do
fenômeno, levando em consideração que o fenômeno é aquilo que se
apresenta; a separação entre essência e aparência é uma consequência
natural. Por mais que o pensamento tente compreender e abarcar a
totalidade da realidade, é fato que a consciência não consegue realizar
esse empreendimento. Assim, conforme Marx afirma, se a essência fosse
igual à aparência, a ciência inteira não existiria. Analogamente, se o
objeto fosse igual ao fenômeno, não seria possível a formação da
consciência. A compreensão do objeto requer escolhas de ordem
epistemológicas. Elas não implicam cair no dogmatismo da epistemologia
escolhida. A experimentação de epistemologias diferentes para analisar o
objeto requer cuidados para evitar que implicações lógicas não sejam
totalmente divergentes, de tal forma que inviabilizem a compreensão
mínima do objeto estudado. Incongruências de pressupostos e de
fundamentos básicos precisam ser evitadas. Todavia, as possíveis
contradições que a experimentação de epistemologias diversas, associadas
de forma interdisciplinar, são aceitas como normais dentro dos ensaios.
Conversas entre epistemologias diferentes encontram no ensaio um campo
fértil, sobretudo pela natureza de experimentação. Observando o
positivismo, a fenomenologia, parte do materialismo histórico, o
pragmatismo e o estruturalismo, percebe-se que seus fundamentos surgem e
se consolidam muito em função de ensaios apresentados por seus
idealizadores e seguidores. O fato decorre da eminente a necessidade do
salto indutivo, que todo o novo conhecimento precisa realizar para
reformular e apresentar seus pressupostos e alicerces. O ensaio é a
aproximação das partes, sem que, necessariamente, esteja acompanhado da
obrigatoriedade de escrever sobre o todo. A totalidade, mesmo que
inerente ao objeto, não requer a compreensão consciente, ou
sistematizada de forma cognoscível, isto porque quem "escreve
ensaisticamente [é] aquele que compõe experimentando; quem, portanto,
vira e revira o seu objeto, quem o questiona, apalpa, prova, reflete"
(Bense, 1947, p. 418). Assim, o ensaio aproxima-se do objeto pelo
princípio da não-identidade(2).
Sua forma de compreender a realidade é sempre não dogmática. É meio,
sem cair no relativismo das epistemologias que negam a possibilidade de
conhecer a realidade. O ensaio é a busca pela compreensão do objeto, sem
que nele haja um sistema de compreensão rígido. É a forma como a
realidade é questionada pela razão que questiona a própria razão. Apesar
dessas características, o ensaio não tem caráter fragmentário ou atua
como mero instrumento de especulação motivada pela razão. Implícita na
crítica ao ensaio de que ele seria fragmentário e aleatório, está a
crença na totalidade, enquanto imediatamente dada na acessibilidade do
todo que, por sua vez, implica a identidade - pelo menos potencial -
entre sujeito e objeto, pedra de toque de toda tradição filosófica
ocidental. "O pensamento adquire sua profundidade em função do seu grau
de penetração nas coisas, e não na profundidade da relação que ele
estabelece entre elas e algo diferente das mesmas" (Duarte, 1997, p.
77).
O
"ensaio obriga a pensar a coisa, desde o primeiro passo, em tantos
níveis distintos quantos nela existem, sendo assim um corretivo daquela
rígida primitividade, que sempre se associa à ratio corrente"
(Adorno, 1986, p. 179). O ensaio pode ou não se utilizar da razão
corrente, mas nunca se associa a ela como ato de conformismo. A razão
corrente não deve ser um meio apenas para construir logicidades ou
estruturações sedimentadas da consciência. A razão corrente precisa ser
ponto de partida para novos entendimentos da realidade do objeto. O
ensaio é a transcendência do óbvio, de tudo o que tende a tornar-se
senso comum, pensamento corrente. É tentativa de superação da relação
entre tempo e espaço presentes na racionalização de uma realidade. É o
pensar sobre algo que experimenta o objeto nas suas múltiplas
possibilidades dentro de uma totalidade que não precisa apresentar-se de
forma totalmente cognoscível. O ensaio não se utiliza da história, mas a
constrói na lógica do seu próprio movimento de pensar o objeto nos
imperativos da relação espaciotemporal. A história é que se ergue em
face do movimento do ensaísta e não o ensaísta que se constrói antes de
pensar o objeto, por estar imerso em contexto histórico. Ensaio e
história - como relação de um objeto que caminha pelo tempo, são
equânimes e não estão estabelecidos dentro de uma hierarquia mecanicista
ou classificadora, tal como ocorre na ciência tradicional. O objeto de
um ensaio, que esteja relacionado ao pensar sobre algum elemento da
história, não se subordina à totalidade da história, como mero objeto
funcionalizado em determinado contexto que procura dar compreensão à
unidade do objeto, que é pertencer ao movimento da razão como ato de
reflexão.
A
unidade do ensaio é determinada pela unidade do seu objeto, junto com a
da teoria e da experiência que se encarnaram nele. ... Rebela-se contra
a ideia de 'obra prima', que, por sua vez, espelha a ideia de criação e
de totalidade (Adorno, 1986, p. 181).
A
estética do ensaio tem matizes próprios (Benjamin, 1994). Cada forma
ensaística se relaciona como estética própria, visto que, se o ensaio
não é mera adaptação ou transposição de um sistema pronto e acabado para
compreender o objeto, a estética inerente a este mesmo ensaio não se
apresenta de forma rígida e única. A estética do ensaio está relacionada
à construção do belo, levando em consideração alguns elementos: o todo e
às partes; o discurso; aparência e a essência e a lógica. Em relação ao
todo e as partes, o "ensaio tem que conseguir que a totalidade brilhe
por um momento em um traço escolhido ou encontrado, sem que se afirme
que ela esteja presente" (Adorno, 1986, p. 180). Mesmo que exista uma
totalidade subjacente, no "ensaio se reúnem, discretamente, em um todo
legível, elementos separados entre si e até mesmo contrapostos; o ensaio
não erige um travejamento nem uma construção" (Adorno, 1986, p. 177).
A
contradição entre o todo e as partes não é necessariamente uma oposição
ou a anulação lógica. A contradição existente no ensaio é resultado da
dialética que existe entre a realidade objetiva e o sujeito que pensa
esta mesma realidade. É a lógica da negação da negação, dentro do a priori inerente
das categorias espaciotemporais. Em relação à aparência e essência, o
ensaio não cai na dicotomia da filosofia moderna, que separa aparência
de essência como um fenômeno resultado da limitação do sujeito que
observa o objeto. A separação delas está na não possibilidade de
conhecer a totalidade por força do pensamento, tal como Adorno (1991)
anunciou no texto Atualidade da Filosofia. Para operacionalizar a
apreensão do objeto, a razão instrumental separa os elementos
constitutivos dele para sistematizar de forma a criar uma lógica
compartilhada que possibilite a objetividade em conhecer o objeto.
Assim, aparência e essência, na ciência moderna, são pressuposto
essencial e elementar para conhecer a realidade. No ensaio, entretanto,
essa separação não é rígida e tampouco se apresenta como pressuposto.
Aparência e essência têm a mesma origem. O ensaio não opera,
necessariamente, com as mesmas categorias da razão científica, apesar de
recorrer a elas, quando é necessário.
O
ensaio não requer a comprovação empírica, mesmo que ela possa
apresentar-se como elemento de confirmação de pressupostos. Este é
reflexão permanente, em que a centralidade da sua força está menos na
evidência empírica e mais nos atributos da razão que pensa a realidade.
Apesar disso, a razão subjacente ao ensaio não é de caráter instrumental
ou mecanicista, ou seja, a razão é a da razão transgressora. A razão do
ensaio não pode e não deve limitar-se ao modelo racionalista que se
apresentou e imperou na Idade das Luzes.
No
ensaio, os procedimentos de coleta e evidenciação do mundo empírico não
são o centro de sustentação da sua forma. Todavia, não se nega a
importância da evidência empírica como proposição elementar da produção
de conhecimento. A força do ensaio está na forma como os procedimentos
são questionados e não como eles se tornam verdades inerentes aos
resultados que se originam dele. O autor, na própria atividade de
produção, transforma-se em sujeito que cria, mas que também é criado na
dinâmica de elaboração do ensaio. Este, como elemento pedagógico de
aprender fazendo, adquire autonomia maior na medida em que o autor
renuncia à tentativa de chegar a um fim último, uma verdade suprema. O
ensaio é um meio para quem o escreve, assim como deve ser para quem o
lê. O ensaio não exige comprovação empírica, baseada em evidências em
dados primeiros. A utilização de dados secundários também não necessita
ser apresentada. Assim, a utilização de dados trabalhados
estatisticamente ou coletados pelos métodos tradicionais de coleta de
dados (entrevistas, questionários, observações participantes etc.) não
são relevantes. A utilização de mecanismos de apreensão da realidade
baseada em instrumentos de coletas de dados utilizados pelas ciências
descaracteriza a sua essência. No ensaio, o empírico já está apreendido
pela consciência do ensaísta, e este reflete criticamente sobre o
objeto. O objeto presente na consciência representa um segundo momento.
Ele na consciência é exposto à experimentação da razão do ensaísta, que
procura extrapolar o limite do óbvio. O caráter do objeto refletido pelo
ensaísta está associado à capacidade de estabelecer relações
diversificadas entre o ensaísta, o objeto apreendido e outros objetos
que possam relacionar-se aos dois primeiros. Assim, o ensaio está
"sujeito a erro ...; por sua afinidade com a experiência aberta, ele tem
de pagar com aquela falta de segurança que a norma do pensamento
institucionalizado teme como se fosse a morte" (Adorno, 1986, p. 177).
O
ensaio estuda o objeto na sua condição dialética. Desta forma,
pensamento e objeto estão em movimento. No ensaio, o empírico é um
momento dado, mas que se modifica logo após a primeira apreensão do
objeto por parte do ensaísta. A falta de aprisionamento formal do
ensaísta com o objeto empírico permite-lhe refletir em todas as
direções. O ensaísta pode ainda aventurar-se na compreensão do objeto
por associações ou analogias, sem, contudo, render-se ao formalismo da
técnica científica tradicional. Não é sem motivo, portanto, que o
ensaísta procura compreender a realidade, experimentando as
possibilidades de um vir-a-ser do objeto analisado. Assim, o ensaio
educa os sentidos que apreendem o objeto, interagindo realidade e razão
sem o mecanicismo tradicional com que a ciência acaba enquadrando a
consciência dos cientistas. O ensaísta procura proclamar a libertação
dos primeiros graus de compreensão do objeto apreendido pela consciência
no primeiro momento. As impressões, em muitas situações, são mais
importantes que a apreensão dos objetos por meio dos sentidos. O ensaio
liberta a consciência do aprisionamento estabelecido pelos mecanismos do
simples empirismo. Não se trata de qualificar a compreensão do objeto
por critérios científicos do empirismo, como sendo menos importante do
que a forma ensaística. O ensaísta não desconsidera totalmente o
empírico, caindo em uma metafísica sem sentido ou que nega a importância
do real como elemento importante para a construção do conhecimento.
Apenas o coloca em posição secundária, em face do movimento da razão
para compreender o objeto já apreendido. No ensaio o conteúdo influencia
mais a forma (formatação, sistematização dos tópicos, sequência dos
itens, forma de exposição das ideias, etapas etc.) do que o inverso. A
experimentação do ensaio faz com que o conteúdo defina a forma, pois o
ensaio não se deve render ao formalismo e à estruturação do
conhecimento. Isto não implica em total descaso ou despreocupação com a
forma, pois esta afeta o conteúdo, tal como o tamanho e as
características físicas de um formigueiro, que afetam o que acontece no
seu interior.
O
ensaísta não deve primeiro escolher a linguagem (vocabulários,
sequenciamento das ideias, estilo etc.) para depois pensar no conteúdo
que precisa ser exteriorizado; mas deve fazer com que a linguagem
manifeste o que o ensaísta quer refletir sobre o conteúdo. A linguagem
como forma, deste modo, rende-se às necessidades de esclarecer o máximo
sobre o conteúdo e não o inverso. É por isso que Duarte (1997, p. 81),
estudante dos ensaios de Adorno, afirma que
o ensaio opera por coordenação diferentemente da subordinação lógica do procedimento convencional. O resultado desses modus operandi,
no qual a tensão entre a forma de apresentação e o que é apresentado
cria uma dinâmica própria, é, entretanto, uma construção mais estática
na qual se destaca a justaposição.
Desta
forma, trata-se apenas de estabelecer a primazia do conteúdo, sem se
render à forma, na mera apresentação formal sem conteúdo consistente. O
ensaio segue esta orientação. Não se rende à forma, mesmo que esta seja
importante para os estabelecimentos de parâmetros essenciais para a
construção do conhecimento. A primazia do conteúdo afeta diretamente a
objetividade. Nas ciências, em geral, a objetividade é uma das
características determinantes na formação do conhecimento. Por meio da
objetividade do método adotado, dos procedimentos de coleta, da análise
dos dados, dos protocolos que precisam ser seguidos na aplicação em
procedimentos específicos, da formatação e apresentação do trabalho
final, etc. a ciência constrói um saber socialmente compartilhado. Não
se trata de questionar a importância da objetividade da ciência, pois
esta por todos os benefícios gerados para a humanidade já justifica a
necessidade da criação do conhecimento objetivado. O ponto é não
dogmatizar sobre o conhecimento científico como o verdadeiro, o único
correto ou o melhor. O ensaio permite que o ensaísta apresente
fragmentos de pensamentos, reflexões iniciais e parciais, sem cair na
necessidade de apresentar um sistema completo de pensamento. Assim, o
ensaio se aproxima das manifestações rápidas da consciência, do
intuitivo como característica relevante para a formação do conhecimento.
A objetividade sistematizada, como se apresenta na ciência, por
exemplo, cede espaço às reflexões rápidas e baseadas em componentes
associadas à subjetividade do ensaísta, o que não implica associá-lo a
uma aventura meramente subjetiva.
A
objetividade não está no método, como ocorre na ciência, mas na
surpresa que o ensaio provoca em quem o lê. A objetividade não acontece
na formalidade de se aceitar um método consolidado e validado por
sucessivas repetições sistematizadas de um procedimento. Ela consiste
inicialmente no reconhecimento da originalidade do ensaio por parte
daqueles que o leem. Desta forma, a objetividade é desnudada do
formalismo burocratizante da ciência. A objetividade do ensaio não está
associada exclusivamente à construção de um sistema racional
compartilhado e que se reifica com o tempo devido à natureza afirmativa
da ciência. O ensaio tem como característica não cair em dogmas de
natureza afirmativa. O fato é que a objetividade do mundo contemporâneo
leva a uma racionalidade limitada, de compreensão de um espectro
reduzido ao sensível e baseado na aparência do fenômeno. O ensaio,
anterior ao estabelecimento da ciência com critérios extremos de
objetividade, procura fugir dessa lógica. Apesar de trabalhar com a
ideia que o objeto existe independentemente do sujeito, pois o próprio
ensaio é a prova disso, o mesmo constrói a objetividade no próprio
processo de conhecer o objeto. Este processo de construir o conhecimento
serve, posteriormente, como elemento de surpresa para aqueles que leem o
ensaio. A legitimação do ensaio está na aceitação daqueles que os leem e
independentemente de concordarem ou não, o legitimam por reconhecerem
sua originalidade e demais características, por meio da integração e
envolvimento na construção do conhecimento, durante o processo de
interação do ensaísta com o objeto do ensaio. Esta não ocorre como
acontece nos grupos fechados, cuja burocracia atual instituiu a ciência.
Isto implica afirmar que não são somente os pares de uma mesma área de
conhecimento ou da mesma especialidade que reconhecem se um ensaio é
digno de validade ou legitimidade, mas é o conjunto amplo de indivíduos e
coletivos que dão legitimidade ao ensaio, quando este é reconhecido
como influente e importante no processo de reflexão sobre o que o ensaio
se propõe a pensar.
O
ensaio adquire sua legitimação no conjunto dos indivíduos,
independentemente da área de conhecimento ou especialidade. Exemplo
disso são os ensaístas que pensaram sobre a importância de conhecer, por
verificação imediata do objeto em si, o que acabou por formar o
empirismo. O empirismo não é um conhecimento legitimado apenas por um
conjunto de filósofos ensaístas (Bacon, Locke, Hume, Hobbes, etc.), os
quais refletiram sobre sua importância para conhecer a realidade, mas
também refletiram por todos os indivíduos que se interessam pela
epistemologia e trabalham em áreas e especialidades diversificadas:
física, química, educação, ciências sociais, administração, economia
etc.
No
ensaio, um objeto existe por si só, ou seja, é uma coisa-em-si. Mesmo
que este objeto não seja concreto ou material e verificável, porque se
pode pegá-lo. O que importa no ensaio é que o objeto pode ser concreto
ou não, material ou imaterial ou ainda imaginário. A condição apenas é
que este seja real. Assim, um objeto pode ser algo objetivo para o
ensaísta e para outras pessoas, estar associado a mais profunda
subjetividade do sujeito; mas o que importa é que ele seja real por se
apresentar como um vir-a-ser cognoscível, mesmo para um número reduzido
de indivíduos. O objeto aparece como fenômeno, isto é, apresenta-se como
coisa-para-si. O fenômeno é resultado de um objeto que adquire
propriedades específicas por simplesmente interagir com o imediatamente
dado: as demais coisas-em-si que existem e estão presentes no contexto
do objeto. Os fenômenos, assim, aparecem como o objeto que está
interagindo em um contexto imediatamente dado, além de já adquirir
propriedades de quem observa o fenômeno. Neste caso, o ensaísta, com
suas condições sensíveis, seus sistemas, mesmo que mínimos, de
interpretação, sua racionalidade, sua contextualização como indivíduo
que está imerso também no imediatamente dado.
O
fenômeno é, portanto, resultado de um para-si, formado no indivíduo que
o presencia dentro do contexto imediatamente dado. Todavia, o indivíduo
não vivencia o fenômeno isoladamente. Na interação com o contexto
imediatamente dado, nas suas condições sensíveis, nos sistemas de
interpretação formulada e na racionalidade do ensaísta, há a presença do
social como condição mediata ou imediata que está presente, concreta ou
abstratamente presente. Nestas condições o ensaio se insere e por elas
ele se aproxima mais da arte do que a ciência, por ser um meio de
autonomia do ensaísta, sem, contudo, colidir com o social. No ensaio, o
ensaísta não se divorcia da sua subjetividade em favor da objetividade
da ciência; apenas se conforma no contexto imediatamente dado. O
ensaísta não precisa renunciar a tudo em favor da objetividade ou da
originalidade, pois ambas são construídas a partir da interação do
ensaísta com seu objeto e no movimento do próprio ensaio. Outro
pressuposto no ensaio é que um fenômeno não é um fato.
Este equívoco é
comum: achar que um fenômeno por si só se constitui um fato. Um fato é
um fenômeno pensado e consolidado com propriedades que provam a
existência do acontecimento propriamente dito. A temporalidade, assim, é
um dos elementos intrínsecos aos fatos. Outra é a presença do social
que legitima como real o que acaba de acontecer. Desta forma, um fato
pode ser identificado e verificado por qualquer um (indivíduo ou
coletivo), que disponha dos meios adequados para identificá-lo e
compreendê-lo como real. Os fatos geralmente adquirem propriedades
qualitativas e quantitativas, podendo, desta forma, ser descritos ou
previstos por meio de aferições.
Os
fatos na ciência moderna só existem devido à existência de instrumentos
ou esquemas de interpretação que os objetivam e possibilitam criar
generalizações. Os fatos na pesquisa científica, em muitas situações,
indicam os objetos que serão analisados. Podem também sustentar as
afirmações como forma de argumentos ou de comprovação. Em Kant a noção
de fato aproxima-se tanto da noção de fenômeno como de elemento ou
condição da razão. Em todas as situações, ele está associado à
experiência e fundado em uma realidade com certas conexões causais. No
ensaio, os fatos não são mais do que elementos que são incorporados no
processo de construção do objeto. Este pode ser o ponto de partida de um
ensaio, mas os mesmos fatos não podem ser pontos de chegada. O
imperativo do ensaio é a transformação e os fatos são modificados
juntamente com o movimento do ensaísta. Os fatos não são tidos como
verdades. Sua utilidade, como prova ou como objeto, é relativa no
ensaio.
Os
fatos são abandonados como verdades no momento posterior à sua
apropriação pelo ensaísta. Eles não servem como momentos afirmativos ou
de comprovações cegas de determinadas realidades. Os fatos geram a
própria desconfiança que o ensaísta precisa fazer perdurar em sua
construção. O ensaísta atribui ao fato o caráter de fenômeno pensado por
conceitos; por isso o fato não é o princípio da verdade. Todo ensaísta
tem como pressuposto pensar a partir de conceitos, que são esquemas de
interpretação. Estes conceitos estão em constantes modificações, pois a
realidade muda, assim como o ensaísta muda na realização do seu ensaio.
Desta forma, o conceito é todo processo que torna possível a descrição, a
classificação e a previsão dos objetos cognoscíveis. O conceito é
formado a partir de uma rede simbólica complexa (organizada de forma
inteligível), relacionada à intencionalidade do sujeito em conhecer. O
conceito não é meramente essência e não é simplesmente signo.
No
ensaio, "todos os seus conceitos devem ser expostos de tal modo que uns
carreguem aos outros, que cada um se articule segundo as suas
configurações com outros." (Adorno, 1986, p. 177). Este movimento
dialético articula conceitos para compreender a realidade, da mesma
forma que neste movimento faz colidir os diversos conceitos que
inicialmente teriam apenas relação remota. Na elaboração do ensaio, o
ensaísta aproxima ou afasta sistematicamente os conceitos com a
finalidade de dar significado para a realidade, seja pelo rompimento do
padrão de compreensão seja para a confirmação dele. O fato é que o
conceito entra no movimento da realidade e do pensamento do ensaísta.
Todavia, esta apropriação dos conceitos pelo ensaísta não ocorre de
forma sistemática ou organizada, não da forma como a ciência geralmente
utiliza ou articula os conceitos. A forma subjetiva como o conceito pode
ser introduzido no ensaio contrasta com o formalismo que a ciência faz
questão de apresentar em todas as etapas dos seus procedimentos.
Enquanto a ciência introduz a condição da objetividade do início ao fim
de uma pesquisa, o ensaio trabalha dialeticamente com a relação
subjetividade-objetividade, em movimento permanente de afirmação e
renúncia ao caráter afirmativo que o conhecimento pode adquirir no
movimento do pensamento. O ensaio faz do movimento dos conceitos uma
arma contra a reificação do ensaísta no processo de construção do
conhecimento, ao contrário do que a ciência tradicional procura fazer
com a utilização dos conceitos, isto porque é "mera superstição da
ciência propedêutica que os conceitos seriam em si indeterminados e que
só seriam determinados através de sua definição" (Adorno, 1986, p. 176).
No
ensaio, a linguagem não é maior que o conceito. É forma de
concretização do pensamento, mas não prisão que inviabiliza pensar para
além do que realmente um conceito quer afirmar. Nem todos os conceitos
precisam prender-se as regras formais da linguagem, pois o ensaísta, em
pouco tempo, abandona o conceito imediatamente criado, para nova
formulação conceitual derivada do primeiro. Neste ínterim, a linguagem e
os formalismos da razão instrumental, inerentes a ela, são abandonados.
Da mesma forma que absorve "conceitos e experiências de fora, assim
também absorve teorias. Só que a sua relação com elas não é a do ponto
de vista" (Adorno, 1986, p. 182). A teoria, na ciência tradicional,
expressa um conjunto de conceitos sistematicamente organizados e
articulados, para criar um contexto cognoscível. Assim, a teoria
apresenta-se como a expressão manifesta do pensar reificado, com
conceitos baseados em fatos apresentados sistematicamente, de forma que
sejam inteligíveis. Desta forma, a teoria tradicional, associada à
ciência tradicional, é cognoscível, pois pressupõe o princípio da
identidade. No ensaio, a teoria nem sempre ocorre por racionalização ou
demonstração, mas pelo princípio da não-identidade. Esta diferença causa
estranhamento aos cientistas ou usuários de abordagens tradicionais das
teorias. Tal estranhamento ocorre devido à recusa da possibilidade que o
princípio da não-identidade é capaz também de resultar em uma forma de
compreensão da realidade. Analogamente, é como aceitar que um surdo
possa compor uma sinfonia. O ensaio não se utilizaria do som, como a
ciência, baseada na teoria tradicional, se utilizaria para fazer uma
sinfonia. Mas, assim como Beethoven foi capaz de utilizar-se de outros
sentidos para compor suas sinfonias, o ensaísta utiliza-se de outros
meios também para construir novas compreensões da realidade. Após
vivenciar a forma tradicional de criar conhecimento por meio das
racionalidades consolidadas, ele procura reorganizar os sentidos, as
faculdades responsáveis pela articulação do pensamento e as convicções
intelectuais para compor nova compreensão da realidade, fora desta do mean stream.
A
teoria adquire o caráter não dogmático de verdade, movimento
tradicional que ocorre nas teorias científicas. A relação do ensaio com a
teoria, assim como na relação entre conceito e ensaio, impera a
não-identidade. No ensaio, o pensamento liberta-se da ideia tradicional
de verdade (Adorno, 1986). O pensamento ganha autonomia por ser algo
inerente ao ensaísta. No contexto do ensaio, o pensamento ganha
autonomia justamente por permitir que a subjetividade do ensaísta ganhe
força e importância na ação de compreender o objeto colocado em análise.
O ensaísta ocupa seu espaço como sujeito de pensamento autônomo, que
não renuncia à autonomia exatamente por não se render aos métodos e
sistemas que tentam objetivar totalmente a realidade. O ensaísta procura
trazer o leitor para o universo do ensaio, permitindo a relação da sua
subjetividade com a do leitor. Os espaços não se consolidam como arenas
de disputas pela razão baseada em verdades provadas por fatos e
evidências. O ensaio permite que os sujeitos relacionados a ele
desenvolvam sua autonomia intelectual e formem seu próprio conhecimento,
sem cair na racionalidade totalitária, que tende a enquadrar a
compreensão da realidade a partir do estabelecimento de verdades
aparentes. Por este motivo, o ensaio não necessita apresentar conclusões
afirmativas. Os questionamentos, em forma de reflexões e de novas
perguntas, são mais relevantes do que conclusões que estabelecem o marco
final e definitivo. A lógica do início, meio e fim não segue a regra
dos projetos de pesquisas tradicionais. A formalidade da sistematização
racionalizada cede em face do movimento permanente de reflexão, que se
constrói a partir da relação dúvida, pergunta, reflexão, identidade,
não-identidade e nova dúvida. O movimento do ensaio pode seguir essa
lógica, sem cair no mecanicismo de ser a única forma de se estabelecer a
construção de compreensões do objeto. No ensaio é mais relevante
estabelecer as dúvidas certas do que chegar às afirmações tidas como
verdadeiras. A importância de estabelecer perguntas adequadas garante a
relação dialética entre subjetividade e objetividade.
No
ensaio, não é preciso uma conclusão no sentido tradicional; cada parte é
uma conclusão por si mesma. No desenvolvimento do ensaio, são geradas
as próprias conclusões para as reflexões anunciadas inicialmente em
forma de questionamentos. Assim, esta parte do ensaio não é uma
conclusão no sentido tradicional; apenas direciona a reflexão para
pensar a realidade do ensaio como forma na administração. Ensaio não é
estudo teórico, baseado em revisões teóricas que, posteriormente, vão
amparar pesquisas empíricas ou reflexões conceituais, formatadas dentro
da divisão clássica da ciência. Existe equívoco, quando é atribuído o
nome de ensaio-teórico para estudos que se caracterizam como estudos
teóricos. Este equívoco tornou-se quase regra, chegando a ser
institucionalizado nos programas de pós-graduação e pesquisa em
administração, assim como nas associações especializadas da área de
administração. Ensaio também não é forma facilitada de produção
científica, em que é exigida apenas a razão do escritor, a partir da
escolha do tema. O ensaísta precisa transgredir a forma convencional e
tradicional de pensar a realidade, pois só assim pode gerar conhecimento
original e diferenciado. O ensaísta é antes de tudo experimentador e
não reprodutor de conhecimento ou produto de reflexões presas à
formalidade do método. Por meio do ensaio, a administração deve
possibilitar um vir-a-ser, ou seja, elo entre o conhecimento existente e
novo, baseados na originalidade.
O
ensaio na administração possibilita a transgressão lógica, tão
importante para o rompimento com a razão tradicional, alicerce da
ciência tradicional. Os ensaístas da administração são convidados à
experimentação do objeto por meio da reflexão negativa, com o princípio
da não-identidade. O ensaio convida também o leitor da área a participar
dele. Na medida em que o leitor o lê, ele por si só reflete a realidade
motivada pelas concordâncias e discordâncias dos argumentos
desenvolvidos. Por meio do ensaio, o leitor é provocado e mobilizado na
sua subjetividade, para concordar ou discordar com o movimento reflexivo
que ocorre no percurso da leitura. Nele não há o deslumbramento, que
induz o leitor à ilusão, mas o movimento de criar a sensação de
desconforto e insatisfação com o que o leitor se depara ao longo da
leitura. No ensaio, há forma própria de relacionar a subjetividade do
ensaísta com a objetividade da realidade como algo que existe em si
mesmo. As subjetividades são convidadas a vivenciar o processo de
objetivação, sem fazer com que alguém renuncie às suas particularidades.
Em áreas como a administração esse processo é visto com desconfiança;
para leitores cujas consciências já foram dominadas pelo método
tradicional de fazer ciência esta forma de conhecimento é vista com
preconceito. O fato é que a realização de um ensaio, em muitas
situações, exige mais esforços do que o método científico de fazer
ciência, visto que, sem as devidas caracterizações descritas
anteriormente, não se pode atribuir a qualidade de ensaio a um conjunto
de conceitos, teorias, argumentos etc.
Na
administração em que o imperativo da objetividade domina a produção de
conhecimento, o ensaio é importante recurso para ampliar a
interdisciplinaridade e promover a construção de saberes por meio da
relação intersubjetiva. Todavia, há dificuldades visíveis, devido à
tendência totalitária em acreditar que o método científico é o único que
pode levar à administração o verdadeiro conhecimento. E você, leitor,
este ensaio sobre o ensaio causou-lhe desconforto suficiente para
fazê-lo lançar-se a realização de um ensaio?
Notas
1 A partir deste momento, o termo ensaio-teórico será mencionado apenas com a nominação ensaio.
2
"A consciência da não-identidade entre o modo de expor e o objeto impõe
ilimitado esforço à exposição. Isso, e só isso é que no ensaio é
semelhante à arte; fora disso, o ensaio está necessariamente aparentado
com a teoria, por causa dos conceitos que nele aparecem e que trazem de
fora não só seus significados, mas também o seu referencial teórico. É
claro que o ensaio se comporta, em relação à teoria, tão cautelosamente
quanto em relação ao conceito. O ensaio não deriva sem rodeios da
teoria, pecado cardeal de todos os últimos trabalhos ensaísticos de
Lukács, nem pode ser pagamento em prestações sobre sínteses vindouras"
(Adorno, 1986, p. 181).
Referências
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